“Central”, um filme indispensável

17 de outubro de 2016

Texto de Aline Frazão originalmente publicado no site Rede Angola.

Este domingo, tive o privilégio de assistir à segunda exibição pública do documentário brasileiro “Central”, em competição na secção de documentários do FESTIN. Realizado por Tatiana Sager, o filme leva-nos para dentro do Presídio Central de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com imagens gravadas pelos próprios presos e alguns depoimentos vivos que nos dão uma exímia descrição do funcionamento do sistema penitenciário no Brasil. Apesar de sairmos da sessão com o estômago do avesso, reina em nós uma profunda sensação de esclarecimento e de que acabamos de ver uma verdadeira obra prima do cinema documental brasileiro.

“Central” é baseado no livro “Falange Gaúcha”, do jornalista Renato Dornelles e conta a história daquele que foi, em tempos, considerado o pior presídio da América. As imagens mostram a degradação do edifício, projectado para receber um número máximo de 1600 pessoas, mas que já chegou a albergar mais de 5 mil. As consequências estão à vista: uma gritante superlotação, esgotos a céu aberto, falta de saneamento básico, de energia eléctrica e de água potável. Uma verdadeira bomba relógio, que incumpre violentamente com as regras mínimas estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

No entanto, para além de visibilizar a falta de conservação da prisão e o estado indigno em que vivem os detentos, o documentário dá-nos uma visão mais ampla e crítica sobre o sistema penitenciário em si. Vemos como cai pelo chão o afã teórico de “correcção”, face a uma taxa de reincidência da ordem dos 70%. A ideia de que se consegue diminuir o crime aumentando o número de detenções nas ruas não passa de um engano. Um jovem de 18 anos entra na Central por vender de drogas, cumpre a sua pena numa autêntica universidade do crime, sai em liberdade e dá-se conta de que poucas opções lhe restam para além de voltar ao crime – ou por dívidas e compromissos contraídos na prisão, ou simplesmente por não conseguir um trabalho. A prisão transforma-se numa dívida eterna paga por toda a sociedade.

“Quanto pior estiver a situação na prisão, melhor para o crime”, repetia um dos entrevistados.

O filme desmonta a teoria da ressocialização, mostrando as complexas dinâmicas internas do presídio, os jogos de poder e o equilíbrio alcançado entre as autoridades e os presos, mediante constantes negociações com os líderes das facções criminosas, que se auto-organizam quase que partilhando a gestão da Central com os guardas. Grande parte das decisões precisa da aprovação tácita ou explícita dos chamados Plantões, os porta-vozes, líderes dos vários grupos, que chegam ao poder de forma autocrática na maior parte das vezes.

Negociar é a palavra de ordem. Essa foi a forma de minimizar as rebeliões, diminuir o número de mortes dentro do presídio e acalmar o fogo mediático à volta da imagem da instituição. Mas quais as consequências desse empoderamento dos presos? Com o decorrer do filme vamos entendendo porque é que esse estado de permanente negociação beneficia tanto o Estado como o próprio crime organizado dentro e fora do presídio.

Os muros, as grades e o arame farpado não separam realmente o mundo de dentro e o de fora, pois o crime organizado tem a possibilidade de se fortalecer ainda mais dentro da Central, aproveitando-se das fraquezas do sistema. Como o Estado investe pouquíssimo dinheiro naquele presídio (20 mil reais mensais, de acordo com o filme), a enorme escassez de tudo, desde alimentos a produtos de higiene básicos, é colmatada pelo mercado clandestino. Este comércio paralelo é uma enorme fonte de rendimento para os bandos criminosos, que lucram ainda de uma espécie de dízimo que deve ser pago pelos membros das facções a cada mês.

O acordo é esse: os líderes das gangues garantem uma estabilidade no presídio, controlando os seus elementos, essa estabilidade sai barata ao Estado e faz com que o crime lucre em cima disso.

O sacrifício das famílias para garantir a sobrevivência dos seus parentes presos é sobre-humano. Algumas famílias gastam cerca de 200 reais por semana. Outras familiares são obrigadas a prostituir-se para pagar favores alheios. É trágico e revoltante.

“Central” é, por tudo isso e muito mais, um filme imperdível que devia ser obrigatório para qualquer pessoa. Sem abusar de julgamentos precipitados e com uma notável imparcialidade, leva-nos a por em causa as formas mais recorrentes e consensuais de lutar contra o crime, em especial o crime organizado, e mostra-nos, de forma clara como água, que não se pode combater o crime sem um combate sério contra a pobreza e a exclusão social. As aparências enganam. Mas a verdade é que vivemos todos misturados na mesma panela de pressão.

O filme foi exibido recentemente em instituições correctivas para menores e o seu impacto naqueles adolescentes foi enorme. Nas palavras generosas da própria realizadora, se não servir para mais nada, o filme já serviu para convence-los a não querer ir parar à Central. Se há alguma maneira melhor de uma obra de arte ter um impacto social real, eu desconheço.

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